segunda-feira, 27 de maio de 2013

Ubuntu


Sobre a natureza da comunidade humana

A estatura de Desmond Tutu como um modelo de tolerância e inclusão dentre os líderes religiosos internacionais tem origem não apenas em sua fé, mas em seu entendimento sobre a natureza da comunidade humana, para a qual ele traz uma sensibilidade singularmente africana. Os trechos a seguir são uma compilação de excertos de apresentações feitas por mais de três décadas em ambientes que variaram de colunas de jornais da África do Sul a discursos no exterior.

Em nosso weltanschauung africano, nossa visão de mundo, temos algo chamado ubuntu. Em xhosa, dizemos: “Umntungumtu ngabantu.” É muito difícil passar essa expressão para outras línguas, mas poderíamos traduzi-la dizendo: “Uma pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas.” Precisamos de outros seres humanos para aprendermos a ser humanos, pois ninguém vem ao mundo totalmente formado. Não saberíamos como falar, andar, pensar ou comer como seres humanos a não ser que aprendêssemos como fazer essas coisas com outros seres humanos. Para nós, o ser humano solitário é quase uma contradição.
Ubuntu é a essência do ser humano. Ele fala de como a minha humanidade é alcançada e associada à de vocês de modo insolúvel. Essa palavra diz, não como disse Descartes, “Penso, logo existo”, mas “Existo porque pertenço”. Preciso de outros seres humanos para ser humano. O ser humano completamente autossuficiente é sub-humano. Posso ser eu só porque você é completamente você. Eu existo porque nós somos, pois somos feitos para a condição de estarmos juntos, para a família. Somos feitos para a complementaridade. Somos criados para uma rede delicada de relacionamentos, de interdependência com os nossos companheiros seres humanos, com o restante da criação.
Eu tenho dons que você não tem, e você tem dons que eu não tenho. Somos diferentes para entender as necessidades uns dos outros. Ser humano é ser dependente. Ubuntu fala de atributos espirituais como generosidade, hospitalidade, compaixão, dedicação, partilha. Você pode ser rico em posses materiais, mas ainda assim não ter ubuntu. Esse conceito fala de como as pessoas são mais importantes que os objetos, os lucros, as posses materiais. Ele fala sobre o valor intrínseco das pessoas como não dependentes de coisas alheias, como condição social, raça, credo, gênero ou grandes feitos.
Na sociedade africana tradicional, ubuntu foi mais almejado do que qualquer outra coisa — mais que riqueza medida em cabeças de gado e extensões de terra. Sem essa qualidade, um homem próspero, embora possa ter sido um chefe, era considerado alguém merecedor de piedade e até desdém. Esse conceito foi visto como o que, em última análise, distingue as pessoas dos animais — a qualidade de ser humano e, assim, também humanitário. Os que tinham ubuntu eram compassivos e gentis, usavam sua força em benefício dos fracos, e não tiravam vantagem dos outros — em resumo, eles cuidavam, tratavam os outros como aquilo que eram: seres humanos. Se você carecesse de ubuntu, em certo sentido, carecia de um ingrediente indispensável do ser humano. Você podia ter tido muitos dos bens do mundo, podia ter tido posição e autoridade, mas se não tivesse ubuntu não importaria muito. Hoje, ubuntu ainda é muito admirado, buscado e cultivado. Só alguém para quem algo drástico aconteceu poderia dizer, como disse uma vez um ministro do governo sul-africano, que a morte de Steve Biko — a morte de um companheiro humano — lhe era indiferente. Aquele ministro perdera a sua humanidade ou estava a ponto de perdê-la.
Os ocidentais têm alcançado avanços espetaculares em grande medida por causa da própria iniciativa pessoal e individual. Têm produzido avanços tecnológicos extraordinários, por exemplo. Esse progresso, porém, tem chegado com um custo gigantesco. A ênfase do Ocidente no individualismo tem mostrado, com frequência, que as pessoas estão sozinhas em uma multidão, despedaçadas pelo próprio anonimato. E isso que torna possível que uma pessoa atravesse a rua enquanto outra está sendo, digamos, violentada por uma gangue: o que está de passagem simplesmente não quer se envolver demais. No Ocidente, as pessoas têm sido educadas em uma cultura do sucesso, na qual úlceras de estômago se tornam símbolos de status. Existe uma obsessão pelo sucesso, e aquilo em que você é bem-sucedido parece não importar tanto quanto ser bem-sucedido. Parece que a pior coisa que pode acontecer é fracassar. E essa cultura rejeita facilmente as pessoas como coisas gastas e descartáveis quando, por serem pobres ou estarem desempregadas, são tidas como fracassadas.
Ubuntu nos ensina que nosso valor é intrínseco a quem somos. Temos importância porque somos feitos à imagem de Deus. Ubuntu nos lembra de que pertencemos a uma única família — a família de Deus, a família humana. Na visão de mundo africana, o maior dos bens é a harmonia da comunidade. Tudo que subverta ou questione esse bem maior é, ipso facto, errado, mau. A raiva e o desejo de vingança subvertem essa coisa boa.
Desmond Tutu

Medio Tutissimus ibis.

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*Extraído da obra Deus não é cristão (TUTU, Desmond. Deus não é cristão. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012).
**Foto de Sebastião Salgado.
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