“Lá se foi a primeira metade do ano, e já estamos
folgados na segunda metade. Agosto continua o quê? Julho deu para balanço? Você
fez alguma coisa do que planejava fazer neste ano? Claro que não. Fez, no
máximo, aquilo que deixaram ou quiseram que você fizesse. Sempre assim, e você
já devia estar habituado. Como, aliás, está. Ou não? Por favor, não me venha
com essa cara de inconformado de nascença. Já é do seu conhecimento, há muitas
centenas de meses, que lhe cabe assistir a um espetáculo de que você, ao mesmo
tempo, é comparsa mínimo. Espectador dos outros e de si mesmo: curiosa
situação, né? A de tanta gente. Nem exceção você é. Não se envaideça. Não se
melancolize.
É isso aí: dão-lhe o direito de fazer planos. Reservam-lhe,
até quadra especial para isso. Não assumem, porém, o compromisso de deixar que
você os execute. Mas podia ser de outro modo? Pense na barafunda que resultaria
da realização simultânea (e conflitante) de todos os planos individuais. Cada
um com seu esquema, sua quimera: a explosão disso tudo, hem? Se preferir, bote
a culpa nas estruturas e infraestruturas, nos sistemas, no acaso, na sorte, em
Deus. Poderes que impedem você de poder. Que podem por você.
Aí está uma confortadora transferência de responsabilidade.
Deixassem você solto, agindo, era aquela beleza. Vertigem boa: pensar em
possíveis e impossíveis. No fundo, meu prezado, você tem é vocação para Deus.
Mas o lugar está preenchido. À vista da frustração, só lhe resta ser um de seus
(in)fiéis. Mas assim como é dificílimo ser Deus, não é nada maneiro submeter-se
à sua jurisdição. O código de proibições e obediências estica-se por mil volumes.
A vida inteira não dá para a leitura. E a letra é tão miudinha!
Em casa, na rua, no hospital, no espaço, em pensamento, você
está sempre obedecendo a um parágrafo visível ou implícito. Ou o transgredindo.
O sinal luminoso do cruzamento é muito mais do que sinal luminoso: é sentença
de morte, caso você não lhe dê a atenção exigida. Ou mesmo dando. O menor
carimbo pressupõe regras invioláveis de conduta.
O jogo da vida consiste, em parte, no estudo de como
violá-las, simulando reverência.
Você esperneia, revolta-se – adianta? Mesmo sua revolta foi
protocolada. O caso da maçã estava previsto. A serpente estava prevista.
Prevista, a expulsão do Paraíso. A lição de alguns autores é que o Paraíso foi
criado exatamente para o homem experimentar-lhe a privação. Da qual resultariam
invenções, técnicas de compensação, poemas, sinfonias. Mas há também quem ache
isso fábula de amor cinzento, descambando para o negro.
Acomodar-se, então, seria a receita? A razão estará com a minoria
selecionada dos quietistas? Ou o caminho que eles encontraram é demasiado
simplório para ser um caminho, e, em vez de conduzir à solução, gira em redor
do problema, acentuando a insolubilidade?
Devaneios. Como você devaneia, irmão! Quer ser e não ser,
sendo. Imagina o vazio, com a sua pessoinha lá dentro, escondida, resguardada,
a se divertir com a imperícia dos outros, que vão aos trambolhões, expostos a
chuva, granizo, fogo.
Como se você também não participasse desse existir precário,
de que só algumas ressonâncias chegam à publicidade, em situações-limite.
Existir que, por ser universal, tem força de regra, torna-se normalidade.
Escusa de dar balanço, ou antes, balancete, nesta parte carcomida do ano. Os
erros são justificáveis, de uma forma ou de outra. É, não deu.
Os acertos, porque involuntários, o são menos. Não
dependeram de você, confesse. De certo, que foi que dependeu de você: as marés,
o câmbio, o desencontro das nações, a briga dos namorados, o amor revelado, a distensão,
a enchente, a qualidade da vida?
Pense em outra coisa. Não impede que você reelabore planos
para o restante do ano e até para o ano que vem. Esporte como outro qualquer.
Experimente agosto. Voltam às aulas, os horários.
Experimente (sempre) viver.”
Carlos Drummond de Andrade
Medio tutissimus ibis.