terça-feira, 26 de junho de 2012

Costela marinada



Marcelo sentiu alguma coisa acariciar a sua perna por baixo da mesa. Lentamente, do calcanhar até atrás do joelho. O pé da Ana Luiza, só podia ser. Ana Luiza estava sentada do seu lado esquerdo, o lado da perna acariciada. Só ela podia alcançar a sua perna com seu pé sem se esticar. A Julinha, sentada na sua frente, teria que estender a perna ao ponto de quase desaparecer debaixo da mesa. E, mesmo, a Julinha era sua mulher. Por que ela faria aquilo? Era o pé da Ana Luiza, não havia dúvida. E se não fosse? Podia ter sido o gato. O rabo do gato. Difícil confundir um rabo de gato com um pé subindo por baixo da sua calça, mas a alternativa era aceitar que a Ana Luiza, logo a Ana Luiza, estava acariciando a sua perna. O gato era preferível, o gato seria um alívio. A Ana Luiza acariciando a sua perna, depois de todos aqueles anos, inauguraria tanta coisa diferente e surpreendente na vida deles todos, dele, da Julinha, do Alemão, marido da Ana Luiza, seu companheiro no tênis, sentado à sua direita, que precisava ser o gato. O gato, rezou Marcelo, em silêncio. Por favor, o gato. Não o pé da Ana Luiza. Não o pé da mulher do Alemão, seu melhor amigo. Qualquer coisa menos o pé da Ana Luiza. Um fantasma e não o pé da Ana Luiza! Marcelo olhou para Ana Luiza. Ela estava falando com a Julinha. Ela não é feia, pensou Marcelo. Nunca notara os seus seios. Mesmo na praia, nunca notara os seios altos e cheios da mulher do Alemão. Altos, cheios e juntos, como ele gostava. Cinco para a uma em vez de quinze para as três, como os da Julinha. Tentou se lembrar das pernas da Ana Luiza. Eram curtas, tinha quase certeza que eram curtas. Ela não conseguiria alcançar sua perna com o pé. Não sem se esticar por baixo da mesa. Fora o gato. Estava resolvido. Fora o gato. “Que fim levou o Clodovil?”, perguntou. Clodovil era o nome do gato. “No veterinário”, disse o Alemão. Pronto, não era o gato. Era o pé da Ana Luiza. A Ana Luiza está a fim. De uma hora para outra, depois de o quê? Doze, quinze anos de amizade, a Ana Luiza está me dizendo com o pé que está a fim de mim. Que depois de todos estes anos quer trocar a amizade por outra coisa, um caso, uma loucura. Que precisamos nos encontrar, longe do Alemão e da Julinha. Que nossas vidas mudarão por completo. Que adeus parceria no tênis. Que adeus temporadas na praia, quando as crianças se entendiam tão bem. Que adeus jantares alternados na casa de um e do outro casal, quando o Alemão cozinhava. Nunca mais as excursões de fim de semana. Nunca mais as noitadas de buraco e risadas. Meu Deus, nunca mais a costela marinada do Alemão! Marcelo sentiu o pé da Ana Luiza acariciando sua perna outra vez. Chutou o pé da Ana Luiza. “Sua costela está melhor do que nunca, Alemão”, disse Marcelo para o amigo. “Se desmanchando. Se desmanchando!”

Luis Fernando Verissimo


Medio tutissimus ibis.

domingo, 24 de junho de 2012

Amo-te por todas as razões e mais uma



Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar. Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras. Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões. Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.
Joaquim Pessoa


Medio tutissimus ibis.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Resíduo



De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade


Medio tutissimus ibis.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Poema de Natal



Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes


Medio tutissimus ibis.

domingo, 10 de junho de 2012

Traduzir-se



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar


Medio tutissimus ibis.

sábado, 9 de junho de 2012

Perdi-me...



Não encontro o caminho
que me fará voltar
perdi o norte e o sul
e do nascente ou poente
apenas breves memórias
que vão ficando ancoradas
à beira do caminho
que não encontro...

Apenas vejo a luz
aquela que me invadiu
e que extravasa de mim
sem que eu entenda
sem que eu decida...

Perdi-me
e ainda assim,
rodopio em mim,
descalça no caminho,
sem norte
sem sul
apenas luz
que me inunda
me avassala
e deixo-me ir...
DairHilail


Medio tutissimus ibis.